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Academia Santanense de Letras, Ciências e Artes

Velho por Ricardo Mota

12/03/2023

Velho por Ricardo Mota

Velho por Ricardo Mota

Ricardo Mota é jornalista, escritor e músico

Na semana que passou, cheguei aos 65 anos de idade. Atravessei três gerações e, como todo mundo que segue nessa toada considerando a vida como um dia após o outro, não carrego a sensação do tempo me empurrando celeremente para o único destino comum a cada espécime da nossa espécie (e de todas, sendo mais exato).

Mas, sim, antes que você pergunte, a resposta já está dada: a velhice chegou sorrateira, sem avisar, apenas tomando posse do que é dela. Em O homem comum, o ótimo Philip Roth previne: “A velhice não é uma batalha, a velhice é um massacre”. Ou seja: não é por falta de aviso que eu sigo tocando a vida sem muitos questionamentos em relação ao tempo que se foi - muito menos o que ainda pode vir.

Tenho cá minhas convicções sobre a morte, pessoais e intransferíveis, mas já se foi a quadra de minha existência em que ela me metia medo. E olha, isso tem tanto tempo que eu só consigo me situar no calendário do destemor seletivo a partir de alguns acontecimentos, estes, definitivamente, inapagáveis.

Se alguma mudança posso apontar em mim nessas décadas de alguma consciência pessoal - com pouca chance de erro -, eu escolho a intensidade de afeto com que me relaciono com coisas e gentes: gosto cada vez mais do que já me era agradável, e o contrário também vale com a mesma ênfase. Mas já não sofro com os meus malmequeres: estes passaram, cada vez, a morar no meu baú do esquecimento, e, lamento dizer, deles/delas só lembro no momento em que se agitam com grande alarde e fúria do outro lado (“Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente” – Guimarães Rosa).

Numa última confissão sobre os (as) tais: guardo certo orgulho dos inimigos que colecionei – e ainda adiciono – na minha trajetória pessoal e profissional, principalmente esta. De alguma maneira eles e elas têm me conduzido por um caminho do qual não tenho muito do que me envergonhar. Claro: no sentido exatamente inverso de ambos os grupos. 

Quanto aos arrependimentos, estes se tornam inúteis desde o instante em que gritam a sua presença, posto que o tempo, esse boçal, nunca quis aprender a fazer a volta, oferecendo-nos, minimamente, a possibilidade de retocar a tela mal pintada. As cores dos erros são as mais vivas, eu sei, mas já não tenho como atenuá-las. 

Mais do que qualquer coisa, há algo que me faz sentir o peso da velhice: o conteúdo, cada vez mais usual, da imprensa profissional – de onde sempre tirei o pão de cada dia -, ainda que tão indispensável nos tempos de hoje, de desinformação desenfreada, de uma mistura insólita de futilidades e questões absolutamente importantes para a vida coletiva. A busca insana e insensata pelo clique (clickbait) resulta num mix que me parece inútil para os dois públicos leitores, cada qual com seus interesses - que não se fundem nem se confundem, impossibilitando a mínima interseção. 

Entristece-me ver “manchetes” no noticiário – em qualquer plataforma – em que influencers e similares dividem espaço, por exemplo, com a invasão russa na Ucrânia, o avanço fascista no mundo, ou o escândalo das joias sauditas. Moderno? Caímos, isso assim, na armadilha apontada por Sebastian Brant, em A Nau dos Insensatos (século XVI)

- Todos os insensatos sofrem do mesmo mal: tudo o que é novo lhes agrada, mas logo perdem o interesse e passam a querer outra coisa.

Não, não acho que a internet potencializou a estupidez, mas ela conseguiu trazer para a flor d´água aquilo que habitava fundamente no pântano da alma humana, algo de que nunca nos livramos ou livraremos e que estava apenas adormecido. 

O que eu alcancei, ainda que não seja muito – e não é mesmo –, me sabe a suficiente para tocar os dias em que, imagino, acordarei ainda para ver o sol. Vivo com pouco porque o pouco já me parece o bastante. Mera presunção, mas há algum aprendizado nessas palavras mal enredadas, e este veio de Epicuro, que o deixou largado por aí para quem quiser ou se interessar. Algo como: as coisas que importam são as simples, o resto é inútil (reconheço: falo de barriga cheia, literalmente). 

Uma canção jobiniana, uma leitura prazerosa ou provocativa, a conversa cotidiana e cheia empatia/simpatia e sem hipocrisia com meus apegos e sossegos, um filme a fechar a noite quase madrugada - eis um brevíssimo resumo do que se tornou o bem-viver para mim.

O gosto pelo silêncio e pela solidão – com um livro ao meu lado – não me parece muito popular, mas fazer o quê? Já não tenho tempo para ser outro nem pretendo sê-lo. Que tragédia, haverão de dizer, e não sem razão, ainda que haja um tanto de comédia nessa rotina que me chega prazerosa, mais do que como sina. É o meu equilíbrio possível, num mundo tão penso.

Dos príncipes, como aprendi com Montaigne, acho que eles “dão-me muito se nada me tiram, e fazem-me bastante bem quando não me fazem mal”. O que quer dizer, ao fim e ao cabo, que não me guio por gurus de nenhum campo de ideias ou credos, apesar de hoje me entender como um amálgama não programado, fusão inevitável das coisas vividas e/ou aprendidas.

Aprecio, sem invejá-los, os que buscam o poder pensando em fazer o bem coletivo: eles renunciam, para todo o sempre, a uma das mais valiosas riquezas, reais e palpáveis, que alguém pode conquistar (em minha opinião): a amizade, rara e cara, incompatível com o seu objeto do desejo. Precisam, talvez por isso, encontrar algo que lhes apareça como compensação, mesmo que venham a descobrir - sempre tarde demais - que a balança não pendeu para o lado da justiça. De um lado ou do outro. 

Se velho, e me parece que sim, fecho esta breve conversa domingueira e preguiçosa com uma frase - um achado de lucidez e sabedoria - do \"velho\" Ulysses Guimarães, que espero poder repetir por merecimento até quando for. 

Respondendo ao então presidente Collor, que o acusava de ser “senil”, ele fulminou seu adversário:

- Sou velho, sim, mas não sou velhaco!