Valdemar de Souza Lima
Valdemar de Souza Lima
Cadeira Nº 7
✩1902 †1986
Valdemar, o intelectual orgânico
Valdemar de Souza Lima personifica inteiramente o intelectual autodidata que, a exemplo de Graciliano Ramos, seu biografado, engrandeceu o cenário cultural brasileiro.
Sua trajetória começou às margens do Ipanema, emoldurada pela matriz de Santa Ana, onde formou uma invejável bagagem cognitiva, não apenas devorando a literatura que lhe caísse às mãos, mas repartindo seu conhecimento enciclopédico com vários companheiros de geração.
Ele se converteu no primeiro intelectual orgânico de Santana do Ipanema, desempenhando, no sentido gramsciano, um papel de liderança espontânea e de perseverança coletiva para constituir uma vanguarda regional que se ampliou do jornalismo para a literatura, a história e a sociologia, projetando-se até mesmo na arte dramática.
O ambiente intelectual por ele guiado em nossa cidade era reflexo daquele regionalismo tradicionalista que Gilberto Freyre disseminou em todo o Nordeste, cujos vestígios foram encontrados pelo historiador Tadeu Rocha em todo o Estado de Alagoas. Seu canal de difusão eram as sociedades culturais como \"o Grêmio Literário Guimarães Passos, de Maceió, ou a Agremiação Literária, Dramática e Beneficente de Santana do Ipanema\", onde os poetas se reuniam para declamar sonetos, aclamados pelos seus admiradores.
\"E a cena se repetia, mudando só os personagens, que eram mais idosos, nas sociedades literárias de Penedo, Viçosa, Palmeira dos Índios ou Mata Grande. Lá em Santana do Ipanema o pessoal da Agremiação Literária, Dramática e Beneficente não era menos ativo: o poeta Valdemar de Souza Lima inspirava-se nos passeios noturnos pelas estradas desertas; o 'causeur' Atanagildo Brandão deliciava se no 'Rocambole' e encantava os seus ouvintes com a 'História do Imperador Carlos Magno e os 12 Pares de França'; Fernando Nepomuceno lia Alan Kardec, citava Flamarion e representava de malandro no palco da agremiação, no sobrado grande do meio da rua; e o professor Zezinho Limeira, depois das suas lições de Gramática e Aritmética, redigia cartas de amor, no jornalzinho municipal, dirigidas a uma desconhecida Mary\" (ROCHA, p. 19-20).
Trata-se de movimento literário que libertou a juventude daquela \"ordem gramatical\" imperante em todo o país e subordinando a prosa ao gongorismo lusitano que adornava a literatura e complicava a oratória.
\"Pelo menos em Santana, o povo continuava vivendo um tempo ultrapassado. Os homens 'sabidos', isto é, lidos ou viajados, discutiam nas esquinas ventiladas, nas farmácias e nas barbearias, as duras regras gramaticais, mesmo quando o bando de Lampião ameaçava a cidade. (...) Lá no Instituto São Tomás de Aquino, o professor Pedro Bulhões não deixava os alunos transgredirem os preceitos da 'Gramática Portuguesa' elementar, de João Ribeiro, o Juiz de Direito da Comarca, bacharel Manoel Xavier Accioly, não admitia cacófatos (...). Diretor e professor estavam absolutamente convencidos de que o futuro da pátria dependia da ordem gramatical. (....) A essa ordem gramatical é que foi perturbar o primeiro movimento regionalista do Nordeste\" (ROCHA, p. 38-40).
Pois bem, o líder dessa corrente renovadora é hoje inteiramente desconhecido das novas gerações e até mesmo excluído da memória histórica local. Vale a pena resgatar seu papel decisivo para a constituição da cultura santanense. Trata-se de fazer justiça a santanense adotivo, reconhecendo seu pioneirismo e restaurando e valor histórico.
HISTÓRIA DE VIDA
Nascido em Salomé, hoje São Sebastião, Valdemar de Souza Lima peregrinou com os pais por quatro outras localidades até fixar-se em Santana do Ipanema. Ali, ajudou o pai, José Virginio de Souza Lima, nas atividades agropecuárias e foi alfabetizado pela mãe, José Leite de Souza Lima, professora pública estadual. Com a morte do pai, em 1914, trabalhou na lavoura com os outros irmãos, mas a seca contumaz e a flutuação do mercado de cereais o empurraram para a cidade. Para sobreviver com a família, torna-se aprendiz de sapateiro e de balconista numa panificadora.
Em compensação, teve a sorte de realizar os estudos primários no curso noturno mantido gratuitamente pelo professor Domingos Lima, com quem também aprendeu noções básicas de contabilidade. Seu mestre, ocupando a função de guarda-livros da viúva de Manuel Rodrigues da Rocha, o recomenda, em 1920, para trabalhar como empregado daquela que era considerada a mais importante casa comercial da região. Passou, então, a desempenhar funções no varejo de tecidos e de miudezas, bem como no atacado, beneficiando e negociando algodão.
Esse aprendizado o estimula a estabelecer-se por conta própria, em 1930. Sem prever a crise que dizimaria a economia sertaneja, naquela conjuntura, inviabilizando todos os negócios, ele foi obrigado a pedir concordata, saldando os débitos com os fornecedores e credores.
Desmotivado, abandona o comércio varejista, em 1933, mudando-se para Maceió, onde retoma o papel de subalterno. Seu mestre e amigo Domingos Lima o indica para emprego em Tércio Wanderley & Cia, empresa comandada por um santanense que triunfara como industrial, liderando o ramo açucareiro.
Mas, sentindo nostalgia da vida sertaneja, ali permanece pouco tempo. Por influência da família da mulher, Luiza Cavalcanti Lima, ingressa, em 1934, no serviço público como secretário-tesoureiro da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios. Acumula também o posto de inspetor estadual das escolas primárias naquele município, convidado pelo então diretor da instituição pública de Alagoas, o antigo prefeito Graciliano Ramos.
A tão merecida estabilidade profissional chegaria no fim daquele ano. Participando de concurso público para tabelião, conquista, por mérito, a gestão do Cartório de 1º Ofício de Palmeira dos Índios, onde permaneceu durante 33 anos sem usufruir férias, licenças ou afastamentos.
Ao se aposentar, em 1969, decidiu transferir-se para Brasília, onde permaneceu até 1986, ano da sua morte. O meio ambiente do Planalto Central o fascinou pela temperatura mediana e pela ausência de poluição. Na vida sossegada da capital federal, teve oportunidade de concluir as duas obras iniciadas no Sertão alagoano: Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios (1971) e O Cangaceiro Lampião es IV Mandamento (1979).
A seiva para nutrir essa produção literária, destacando no panorama intelectual brasileiro, ele reabastecia, todos os anos deixando Brasília na temporada do verão. Em busca da paisagem sertaneja, retoma o contato com parentes, amigos e conterrâneos.
METAMORFOSE CULTURAL
Quem registrou evidências importantes sobre a identidade santanense de Valdemar Lima foi o escritor Oscar Silva, em seu livro Fruta de Palma (Maceió: Edições Caeté, 1953). Trata-se de reconhecimento procedente de outro tipo de intelectual, ou seja, de um intelectual contra-hegemônico, mais identificado com as camadas subalternas da sociedade local.
Em que circunstância ocorreu essa metamorfose e como se fortaleceram seus laços afetivos com a cidade que o acolheu ainda tenra idade?
\"Valdemar de Souza Lima não era filho de Sant'Ana. Havia chegado ali bem pequeno e em companhia dos pais. Sua mãe, a Professora D. Zefinha, tinha sido designada para lecionar às meninas da cidade, e Valdemar criara-se ali, bebendo água do Ipanema e comendo cuscuz com feijão e carne-de-sol assada. Isso fizera-o esquecer aos poucos a terra natal e tornar-se portador de um entranhado amor às cousas de Sant' Ana, a ponto de defender os problemas da terra com mais denodo do que muitos dos chamados verdadeiros santanenses\" (OSCAR SILVA, p. 143-144).
Seu perfil comportamental também aparece com nitidez no testemunho do escritor, que proclama o reconhecimento da cidadania adotiva.
\"Já pela esmerada educação doméstica, já pelo próprio instinto de fugir do mal, Valdemar foi um espelho que os pais santanenses apresentavam aos filhos para modelo de seu comportamento. Quase puritano (qualidade que não invejamos a ninguém), aquele menino tornara-se rapaz, inimigo de brincadeiras, avesso a carnavais, apegando-se somente aos livros e ao trabalho. (...) Inclinado para a literatura (...), sua poesia era seca e esturricada, como que burilada com a areia grossa do Ipanema\" (OSCAR SILVA, p. 144).
Além de poeta telúrico, incentivou as artes na cidade. Desde o início do século 20, Santana tinha, \"como as outras cidades sertanejas\" (...), \"uma vida intelectual semelhante às de suas congêneres da Zona da Mata\", inclusive a música, e \"não raro um teatro de amadores\".
A primeira instituição desse tipo foi a Sociedade Musical Dramática Santanense, fundada por Manuel Vieira de Queiroz, cujas atividades foram retomadas nos anos 20 pela \"Agremiação Literária Dramática e Beneficente\", fundada por Valdemar Lima e outros líderes \"progressistas da terra\".
Embora demonstrasse austeridade moral, sua verve dramática só transparecia no palco, quando representava papéis com os quais não se identificava.
\"Pois bem, esse poeta de moral inatacável, esse homem que só amou para se casar, esse rapaz que tinha horror ao cheiro de álcool, esse Valdemar representou no teatro o mais perfeito papel de bêbado que já vimos. (...) Desempenhava isso com uma perfeição admirável: a fala, os gestos, as atitudes eram de um ébrio consumado. (...) Aquilo era, sem dúvida, a arte em toda a sua pureza” (OSCAR SILVA,p.. 146).
PIONEIRISMO
Contudo, a maior realização de Valdemar de Souza Lima no âmbito da história local foi a de pioneiro do jornalismo santanense o que mereceu destaque na contracapa do seu livro sobre Graciliano Ramos, cuja primeira edição tem o selo da Editora Marco, Brasília (1971).
\"Interessado que foi sempre na evolução cultural do Estado, fundou com outros colegas o jornal O Panema, que circulou em Santana do Ipanema em 1926\".
Oscar Silva anotou algumas referências históricas comprovam que a existência desse jornal pioneiro, do qual não existem exemplares nos acervos documentais da região.
Resgatando fatos relacionados com as ameaças de invasão do território santanense pelo bando de Lampião, ele apresenta como fonte uma matéria publicada em 1927.
\"Dias depois, circulava O Panema e em suas colunas dava a notícia (...)\" (OSCAR SILVA, p. 78).
Novamente, Oscar Silva cita o jornal santanense como fonte de um acontecimento que emocionou a comunidade local, ou seja assassinato de um trabalhador rural pelo cigano Damião. Na verdade ele contesta a versão do jornal, sugerindo que a matéria errou ao identificar o assassino.
\"Publicando o fato, O Panema dava como sendo Sinhô Pereira o nome do cigano. (...) Posso também estar enganado. Só o arquivo de processos criminais poderia esclarecer a verdade\" (OSCAR SILVA .109).
Como se trata de fato datado de 1929, deduz-se que a vida do primeiro jornal santanense foi relativamente duradoura, circulando de 1926 a 1929. Certamente, o periódico foi tragado pela voragem da crise econômica decorrente da Quebra da Bolsa de Nova Iorque, debilitando a economia mundial e repercutindo na vida sertaneja, sem dúvida afetada também pela Revolução de 30.
Tadeu Rocha também testemunha a existência do \"jornalzinho municipal\", onde o professor Zezinho Limeira publica imaginárias cartas amorosas (TADEU ROCHA, 1964, p. 19).
Tudo indica que se tratava de \"jornal manuscrito\", conforme testemunho prestado por Valdemar ao redator da nota biográfica contida no intróito da segunda edição do seu livro sobre Graciliano Ramos.
Seu ingresso no jornalismo impresso só se daria em 1933, quando publica reportagens no vespertino maceioense O Estado, passando depois a atuar como correspondente da Gazeta de Alagoas e do Diário de Pernambuco.
BANDEIRA DE LUTA
Somente em 1959, Valdemar de Souza Lima abandona postura de mediador das notícias que tinham como cenário o Sertão alagoano para se converter em protagonista. É exatamente na ocasião em que toma conhecimento da demolição potencial da casa em que Graciliano Ramos viveu em Palmeira dos Índios, ali produzindo ali seus primeiros romances. Ele promove uma renhida campanha para salvar esse patrimônio histórico, preservando o imóvel e nele criando um museu destinado a resgatar a memória do seu ocupante emblemático.
A vitória foi comemorada em 1971, quando ele já se encontrava residindo em Brasília.
Mas a sua bandeira de luta mereceu apoio decisivo de muitos intelectuais nordestinos, dentre eles o santanense Tadeu Rocha, companheiro de mocidade na terra adotiva, com o qual manteve intensa correspondência, durante e após sua cruzada graciliânica.
Interlocução epistolar
Tadeu Rocha tinha apenas 4 anos de idade quando Valdemar Lima começou a trabalhar como empregado da casa comercial propriedade da sua família. Ele cresceu, portanto, acompanhando a movimentação intelectual do jovem amanuense, que esteve à frente da vanguarda santanense na década de 20.
Como \"criança privilegiada\", na conotação que lhe atribui Oscar Silva, porque estudante do elitista Instituto Tomás de Aquino e também porque vivesse num \"sobrado de dois andares\", mais \"perto do Céu\", Tadeu Rocha certamente tinha as antenas ligadas no cotidiano do seu povo e na singularidade da sua terra, desde os tempos em que \"à tardinha, descia para o passeio e ficava, de uma ponta a outra da calçada, a fazer voltas em seu velocípede\".
Mais tarde, ele confessaria a admiração que tinha por Valdemar Lima, considerado um dos seus ídolos infantis, testemunhando esse apreço no primeiro capítulo do seu clássico ensaio Modernismo e Regionalismo (Maceió: DEC, 1974, p. 17).
\"Ai por volta de 1925, um menino de Santana do Ipanema achava que a casta dos heróis e a raça dos poetas deveriam ser muito pequenas. Até então, só haviam atingido os seus horizontes municipais três heróis e apenas um poeta. Heróis: o coronel Delmiro Gouveia (...); o capitão Lampião (...) e o tenente José Lucena Maranhão ( Poeta somente o guarda-livros Valdemar de Souza Lima, fundador da Agremiação Literária, Dramática e Beneficente (...)\".
O \"prestígio mágico\" que o poeta santanense inspirava a Tadeu Rocha foi paulatinamente se convertendo numa amizade que se desdobrou em cooperação intelectual ao longo da vida dos dois escritores.
Demonstração cabal dessa afeição mútua está contida nas cartas que Tadeu e Valdemar trocaram ao longo da vida, tendo como fator convergente a identidade santanense de ambos e a devoção pelas causas sertanejas.
Vamos comprovar a assertiva tomando como referência uma amostra aleatória de dez missivas coletadas no Acervo Tadeu Rocha, preservado pela Fundação Joaquim Nabuco, em Recife (PE). Nesse recorte, encontramos sete cartas remetidas por Valdemar a Tadeu e três epístolas firmadas por Tadeu e dirigidas a Valdemar.
VIDA PRIVADA
O elo afetivo entre os dois missivistas estriba-se na amizade cultivada desde os tempos em que viveram no Sertão. Valdemar Lima, em carta de 19/05/1973, sublinha essa afeição.
\"Acho que já faz um ano e meses que não trocamos correspondência, mas a certeza de que este ponto é inarredável, enfim, nos traz uma sensação de segurança\".
As contingências por eles enfrentadas no ocaso da vida determinam as referências à precariedade da saúde, mais sentidas por Tadeu, cuja cegueira é tema recorrente de suas epístolas ao amigo Valdemar.
“Como é do seu conhecimento, desde meados de 1965 que não leio uma só palavra. Possuindo, apenas, um décimo da visão (...) continuo pesquisando e escrevendo, como você mesmo viu, em agosto de 1969, ainda em Palmeira (...)” (Carta de 26/12/1977).
\"O ceguinho continua a vida de sempre, trabalhando e rezando(...). Trabalho, no máximo, quatro horas por dia, geralmente pela manhã, com a secretária de lado (minha mulher)... (...) Gostaria de trabalhar mais, entretanto, os médicos não me permitem (...). Felizmente, o velho coração é forte e trabalha direitinho\" 17/02/1981).
Mesmo sendo mais idoso do que o amigo, Valdemar ostenta saúde de ferro. (Carta de 17.02.1981)
\"De mim, sei lhe dizer que dentro de algumas semanas completarei 80 janeiros, e não estou descontente comigo mesmo porque a saúde tem sido para mim uma preciosa aliada. Alimento-me bem e durmo sem acordar, 7 horas em 24\" (Carta de 18/01/1982).
Além disso, permeia sutilmente a comunicação desses escritores a religiosidade, que, aliás, tem sido uma das marcas da cultura santanense.
Algumas vezes, ela representa augúrios, e, em outras, resignação.
\"Que o senhor Jesus, renascido em nossos corações, conceda paz de espírito e saúde corporal a você, Luzita, filhos e netos\" (Carta de Tadeu, 26/12/1977).
\"Mas seja o que Deus quiser. A vida tem que tocar para a frente de qualquer forma, tão certo de que ela não tem pena de ninguém (Carta de Valdemar, 18/01/1982).
\"Mas Deus sempre nos dá coragem para as lutas da vida. ...) Como você sabe, a fé e a oração constituem a nossa força, que nos faz aceitar a vida e manter a alegria de viver\" (Carta de Tadeu 5/12/1971).
Não faltam também demonstrações de profunda imersão na vida eclesial, herança familiar indelével, preservada pelo sentimento de crença no evangelho.
\"Fazemos questão de sermos fiéis à Igreja, mas a verdadeira Igreja, dirigida pelo Santo Padre, o Papa Paulo VI, e, por ele, tão orientada, segundo o autêntico pensamento evangélico” (Carta de Tadeu, 25/12/1971).
\"Vou parar aqui porque chegou a vez da prece. De fato, rezo muito, Tadeu. Não sei se estou melhorando. Talvez não esteja. Mas insisto. Ora, se o próprio S. Paulo - ele que se transformara no VASO ESCOLHIDO - se queixava de que nem sempre fazia o que era do seu dever, exclamando: 'Não pratico o que quero e faço o que aborreço’” (Carta de Valdemar, 19/05/1983).
As narrativas familiares ocupam espaço razoável nesse colóquio epistolar entre dois amigos sertanejos.
\"Margarida e eu continuamos com a saúde sempre instável e quando um não está bem disposto, a produção intelectual se reduz (..) As lutas diárias da vida (...) incluem a educação de ainda nove menores (Carolina, com 19, que vai fazer vestibular de Medicina agora em janeiro, e oito mais jovens, até Estevão, com 9 anos, que vai fazer o terceiro primário)\" (Carta de Tadeu, 25/10/1971).
“Tendo enviuvado em julho de 1972, casei-me com minha parenta Oralda Medeiros, filha mais velha de Sebastião Medeiros e de Lavínia, filha de Dona Ernestina e do meu parente Tobias da Rocha Wanderley, que você deve ter conhecido lá em Santana\" (Carta de Tadeu, 25/12/1977).
\"Nós sabíamos do seu terceiro enlace matrimonial com uma moça de família Wanderley do Poço da Trincheiras, mas ignorávamos o nome dela. Agora, com a sua carta, é então que me certifico de Oralda é filha do Velho Medeiros, de quem tanto gostava, e de Lavínia, que com o saudoso Moacir, Dolores e Mariinha foram meus colegas de escola\" (Carta de Valdemar, 17/02/1978).
\"A minha tribo, aqui, se compõe de 32 elementos, o que já não deixa de constituir um bom contingente...\" (Carta de Valdemar, 11/02/1982).
A sensação que temos é a de um confessionário, em que eles se revezam nos papéis de narrador e de ouvinte, num clima de absoluta confiança e de generosidade mútua.
VIDA INTELECTUAL
Dois temas catalisam a atenção dos interlocutores: o lançamento do livro de Valdemar sobre Graciliano e a publicação da obra de Tadeu focalizando o itinerário de Delmiro Gouveia.
Em decorrência dessas incursões pelo universo da criação literária, ambos acalentam projetos que representam uma espécie de \"canto de cisne\" das suas trajetórias intelectuais.
Tadeu Rocha, em carta a Valdemar Lima, celebra o lançamento do seu livro Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios (Brasília, 1971), em edição bancada pelo próprio autor, dando dicas sobre distribuição e comercialização, tendo em vista a experiència por ele acumulada na edição do seu consagrado Roteiros do Recife (Recife, 1959).
\"Quanto à distribuição do livro (...), o jeito é você contratá-la com uma empresa distribuidora. Acontece, porém, que eles só aceitam a incumbência mediante 50% sobre o preço de capa. (...) Por outro lado, as poucas distribuidoras são sediadas no Rio e S. Paulo, nem sempre merecendo confiança. (...) Em Palmeira dos Índios e Santana do Ipanema, você venderá os livros diretamente, lançando-o como aí em Brasília\" (Carta de Tadeu, 25/12/1971).
\"Em Brasília, conquanto já agora transformada em grande centro de estudos, a crítica ainda não tem lugar. De outro lado, aqui, cada intelectual vive do apartamento para o trabalho, não existem pontos de encontro, nem associação onde eles possam se reunir para trocar idéias\" (Carta de Valdemar, 27/01/1972).
\"Quase cinco anos depois de lançadas a 1a. e a 2a. edições do meu livro sobre Delmiro Gouveia, (...) resolvi, então, dedicar-me à veracidade do álibi...\" (Carta de Tadeu, 26/12/1977).
À margem dessas obras que conquistaram credibilidade nacional, os dois autores santanenses concebem projetos culturais (museus) e a eles se dedicam diuturnamente.
\"A Casa de Graciliano em Palmeira está ameaçando desabar. Fiz campanha pela imprensa, mas o governo do Estado quebrou um pau no ouvido. Vi-me forçado a procurar o Ministério da Educação e Cultura. Fui bem recebido\" (Carta de Valdemar, 27/01/1972).
\"O caso do Museu Delmiro Gouveia complicou-se horrivelmente, com os 55% de redução do orçamento da Chesf. Estava tudo bem encaminhado com o novo presidente da companhia, quando Eletrobras fez mais essa miséria com o nosso pobre e esquecido Nordeste. Voltamos à estaca zero...\" (Carta de Tadeu, 17/02/1981).
\"(...) vai em marcha a idéia de trasladação para Palmeira dos restos mortais de Graciliano. (...) Resta agora o Museu de Delmiro. (...) É preciso um pouco mais de respeito à Pró-Memória num país onde já se escreve tanto livro, conquanto a leitura deles não seja ainda de pesar na balança\" (Carta de Valdemar, 18/01/1982).
O jornalismo, atividade praticada pelos dois intelectuais santanenses, também aparece com destaque nas cartas intercambiadas.
“Desde a volta do Rio, reiniciei os meus estudos de pesquisas para o Diário de Pernambuco. Essas pesquisas, geralmente, atendem a circunstâncias sugeridas por fatos ou datas de interesse geográfico, histórico, econômico, literário ou religioso” (Carta de Tadeu, 25.12.1971).
\"Suas reportagens, das quais só possuía a que se refere ao Velho Graça, estão ótimas\" (Carta de Valdemar, 24/05/1975).
\"Sem vaidade (mas, também, sem falsa modéstia), tive a alegria de denunciar corajosamente o ‘erro judiciário' de que foram vítimas três inocentes sertanejos\" (Carta de Tadeu, 26/12/1977).
\"Tomei conhecimento, através do Correio Brasiliense, da notícia relacionada com a implantação do Museu Delmiro Gouveia, (...) você verá (...) cópia xérox de uma crônica de minha autoria divulgada no inverno do ano passado pelo Jornal de Alagoas\" (Carta de Valdemar, 19/05/1983).
Como cidadãos comuns, os dois correspondentes trocam informações sobre a vida cotidiana de Santana do Ipanema.
Tadeu Rocha, por exemplo, faz confidências a Valdemar, mas naturalmente pede sigilo, sobre os fuxicos que correm pela cidade, apontando os nomes dos principais fofoqueiros.
\"Dizem as más línguas lá de Santana que o ceguinho aqui é de 15 de fevereiro de 1916, como também fazem um fuxico medonho, a respeito de sua idade, que no próximo dia 20 seria de 79 anos. Evidentemente, não acredito nessa fuxicada, que deve ser urdida pelo nosso querido Fernando Nepomuceno e inocentemente apoiada pelo meu compadre Marinho, para quem os mais velhos são sempre 'monacas'. Mas, caro Valdemar, que fazer com o tempo, que permite enganos e fuxicos até danados, como este: Dona Dalva, daquele país chamado Poço das Trincheiras, muito apreciado pelo velho Mané Firmo, estaria disputando suposta 'era' e que os fuxiqueiros da nossa Santana estão atribuindo ao ilustre filho da Professora Dona Zefinha, que durante muitos anos foi a principal procuradora do Senhor São José (de botas ou sem elas). Acho conveniente o maior sigilo sobre a 'era' de Dona Dalva, que em sabendo desta correspondência poderia mandar ‘arquivar’ o ceguinho e antigo comerciário…” ( Carta de Tadeu, 17.02.1981).
Valdemar enfatiza dois aspectos da sua relação empática com o Sertão santanense. Lamenta a continuidade da violência política na região, vitimando lideranças carismáticas como o ex-prefeito Adeildo Nepomuceno Marques. Apesar disso, não deixa de expressar nostalgia que sente pela paisagem da terra dos mandacarus e pela gente sertaneja.
\"(...) eu não poderia deixar de me referir à horrível tragédia e vitimou o nosso malogrado Adeildo. Acredite, porém, você, que não tinha coragem de tecer comentário a essa infinita desgraça, e que que deixou tão traumatizado, em face do envolvimento nela de pessoas, como a própria vítima, tão ligadas a mim e à minha família\" (Carta de Valdemar, 17/02/1978).
\"Não preciso lhe dizer, Tadeu, da falta que me faz o meu ambiente nordestino; às vezes, até do que não presta - e que ficou para trás - eu sinto saudade\" (Carta de Valdemar, 19/05/1983).
Quem percorre, com atenção, o epistolário de Tadeu Rocha percebe claramente seu orgulho da identidade sertaneja e da naturalidade santanense. Nas cartas escritas a personalidades distintas do cenário nacional ou do território estadual, ele reitera sua identificação como sertanejo de Santana do Ipanema.
Fonte: Alagoas na Idade Mídia, José Marques Melo, Maceió - Viva Editora,2013.